A COVID-19 pode afetar diversos órgãos e sistemas, incluindo o cérebro.

A COVID-19 possui características complexas que vão além dos notórios sintomas respiratórios. Relatos de sintomas neurológicos em pacientes com COVID-19 começam a se acumular. Eles possuem variada severidade, incluindo desde perdas no olfato, no paladar e dores de cabeça, a derrames (acidente vascular encefálico), coma, síndrome de Guillain-Barré e epilepsia. Dependendo da população analisada, as alterações do sistema nervoso acometem de 35 a 57% dos pacientes hospitalizados com COVID-19 e podem ser responsáveis por 4% das mortes. Ainda, confusão mental e alterações de consciência estão associadas à maior gravidade da doença. Devido a sua relevância, foi cunhado um novo termo para os sintomas neurológicos associados a COVID-19, a NeuroCovid. Esse é o tema do nosso podcast esse mês, clique aqui para ouvi-lo.


O que são coronavírus?

Como explicado em mais detalhes em publicação anterior, os coronavírus são uma família de vírus grandes que causam doenças gastro-intestinais e respiratórias em animais e humanos. Os coronavírus não eram conhecidos como causadores de doença grave em humanos até a disseminação da SARS (Síndrome Respiratória Aguda Severa), em 2002 na Ásia e da MERS (Síndrome Respiratória do Oriente Médio), em 2012. Recentemente, um novo coronavírus emergiu em Wuhan na China, causando a COVID-19 (Doença por Coronavírus-19). O novo coronavírus foi nomeado SARS-CoV-2, por ser um coronavírus semelhante geneticamente ao que causou a SARS (SARS-CoV). Ele rapidamente se espalhou pelo mundo, causando grave crise de saúde por sua alta capacidade de disseminação e potencial letal.


Outros coronavírus causam alterações nervosas?

Sim. A capacidade de invadir o sistema nervoso central (SNC) parece ser uma característica conservada entre os coronavírus. A epidemia de SARS, por exemplo, também foi associada a sintomas neurológicos. O material genético ou proteínas do SARS-CoV foram encontrados no líquido que banha o SNC (líquor) e no cérebro de pacientes infectados. Em modelos da doença em roedores, o SARS-CoV invade rapidamente o SNC e infecta o tronco encefálico, local onde se encontra importante centro de controle cardiorrespiratório. É importante destacar que, além de relacionados geneticamente, o SARS-CoV e o SARS-CoV-2 compartilham mecanismos semelhantes de invasão celular. Por essas semelhanças, alguns autores sugeriram que o SARS-CoV-2 também poderia invadir o SNC através dos nervos responsáveis pela olfação e, que essa invasão poderia ser anterior e parcialmente responsável pela falência respiratória aguda induzida pela COVID-19. Mas é claro, isso ainda é uma hipótese.


O que se sabe da COVID-19 e o cérebro?

Sintomas neurológicos são comuns em pacientes com COVID-19 e, confusão mental e distúrbios de consciência são associados à gravidade da doença. O material genético (RNA) e as próprias partículas do vírus SARS-CoV-2 foram recentemente detectadas em autópsias de cérebro de pacientes infectados. O material genético do vírus também foi detectado no líquor de um paciente. Neurônios e células da glia possuem o receptor necessário para fusão com o vírus (a enzima conversora de angiotensina-2, ACE-2). Apesar de ainda não termos claro se o vírus infecta de fato as células nervosas, evidências do mecanismo pelo qual a COVID-19 pode causar doença e mesmo sequelas no cérebro começam a surgir:

  • Pacientes com COVID-19 severa apresentam maiores níveis de marcadores de dano neuronal e glial no sangue.
  • Em experimentos com mini-cérebros cultivados em laboratório, o SARS-CoV-2 induz a morte de neurônios e alterações moleculares semelhantes a de doenças neurodegenerativas, como a doença de Alzheimer.
  • O risco para COVID-19 severa é maior em pessoas que possuem uma variação genética na proteína APOE (APOE4). De forma intrigante, essa mesma variação é o principal fator de risco genético para desenvolvimento da doença de Alzheimer não familiar. Ademais, essa variação genética na proteína APOE perturba o funcionamento da barreira que protege o sistema nervoso de infecções do corpo (barreira hematoencefálica) e aumenta o risco de desenvolvimento de demência.

A COVID-19 também poderia causar alterações no cérebro indiretamente por meio da inflamação.

Pacientes com COVID-19 grave desenvolvem um quadro de sepse. Sepse é uma inflamação generalizada do corpo causada por algum patógeno e muito grave. Ela causa disfunção múltipla dos órgãos e a pressão arterial do paciente cai perigosamente. Na sepse e em pacientes com COVID-19 grave há uma “tempestade de citocinas”. Citocinas são moléculas liberadas pelo corpo e que promovem a inflamação. Uma dessas citocinas aumentada em pacientes com COVID-19 é a mesma que desencadeia a disfunção de sinapses e alterações de memória em roedores adultos infectados com o vírus da Zika. Ela é também um importante gatilho de alterações moleculares associadas ao declínio cognitivo na doença de Alzheimer. Eventos inflamatórios agudos podem alterar o funcionamento do cérebro de forma duradoura, agravando condições neurológicas pré-existentes ou mesmo aumentando o risco de desenvolvimento de doenças neurodegenerativas e depressão tardiamente. Pacientes sobreviventes à sepse frequentemente desenvolvem sequelas neurológicas e possuem maior risco de desenvolvimento de demências. Similarmente, é possível que pacientes sobreviventes da COVID-19 estejam sob maior risco de desenvolvimento de depressão, demências ou doença de Alzheimer daqui uns anos.

Por isso, é importante fomentar pesquisas sobre os possíveis efeitos agudos e prolongados da COVID-19 no cérebro para fomentar políticas públicas de acompanhamento de saúde adequadas pós-pandemia.


O que podemos fazer para prevenir os efeitos graves da COVID-19 no cérebro?

Infelizmente, a COVID-19 ainda não possui uma cura ou vacinas com eficácia comprovadas. Até o momento, a melhor forma de prevenção é evitar a exposição do vírus por meio das medidas de distanciamento social. Se por um lado as medidas de contenção da transmissão diminuem o risco de contágio da COVID-19, o isolamento social e a crise social geradas pela pandemia também trazem seus riscos para saúde mental. O isolamento social, a insegurança e os potenciais traumas (para os afetados mais diretamente) podem favorecer o surgimento de depressão e transtornos de ansiedade. Por isso, é importante relembrarmos os métodos que possuímos de promover o bem estar mental e a saúde do nosso cérebro:

exercício físico é capaz de modificar nosso cérebro, aumentando a produção de fatores que estimulam a formação de novos neurônios e novas sinapses. Com isso, o exercício físico melhora a memória, diminui a ansiedade e pode prevenir a doença de Alzheimer.

Outras formas de promover o bem estar mental possíveis de serem aplicadas individualmente na pandemia são através da manutenção de uma alimentação saudável e da prática da meditação.

E você? Não deixe de nos contar o que faz para se manter saudável e seu bem estar mental nessa situação atípica.

 

Para os cientistas de plantão, aqui vão algumas referências:

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