“A memória é codificada por padrões de atividade neuronal em circuitos distintos. Portanto, deveria ser possível se usar uma engenharia reversa na memória, criando esses padrões de atividade na ausência de experiência sensorial”.

Esse foi o início do trabalho publicado na respeitada revista científica Nature Neuroscience. E parece algo vindo da ficção científica. Os pesquisadores conseguiram ativar um circuito específico no cérebro de camundongos levando os animais a expressarem uma memória a um odor que nunca antes haviam tido contato. O tema é interessantíssimo para a comunidade científica porque comprova o papel de determinados circuitos cerebrais dentro do comportamento e da memória, tema ainda em debate na área. Quer saber como os pesquisadores fizeram isso? Vamos olhar para o trabalho com mais detalhes.

Uma forma de se estudar memória é através do estímulo condicionado. Esse experimento foi proposto em 1890 por Pavlov e modificações do original são utilizadas até hoje em dia. Pavlov estudava a fisiologia do sistema digestório e media a quantidade de saliva de cães ao serem apresentados a um pedaço de comida. E se observou que eles passavam a produzir mais saliva ao avistar o alimento (assim como nós não é mesmo?). A parte interessante da pesquisa de Pavlov se deu através condicionação ao estímulo. Pavlov passou a usar um sino toda vez que apresentava comida ao animal, até que o mesmo aprendesse a associar o som do sino à comida recebida. Dias depois, quando o animal fora apresentado ao sino ele aumentava a produção de saliva, apesar de não ter comida envolvida.

Esse experimento é importante porque associou um comportamento de aprendizado (associação sino + comida) com uma medida fisiológica (nesse caso saliva). E pequenas alterações no desenho experimental foram utilizadas para inserir a memória falsa no camundongo. O animal era colocado em uma caixa com um odor chamado acetofenona, enquanto recebia um choque elétrico. O animal passava então a associar o odor com o choque e produzia aversão a ele. Quando era colocado em uma caixa com dois odores para escolha: acetofenona e carvona, o animal evitava acetofenona e passava um tempo superior no compartimento com odor carvona. O animal havia com sucesso aprendido a “temer” o odor, pela associação ao choque elétrico.

E é aí que entra a engenharia reversa: ao invés de apresentar o odor acetofenona a um novo grupo de animais, os pesquisadores ativaram o grupo de neurônios olfatórios junto a administração do choque. Em seguida esse grupo de animais foi colocado numa caixa com duas escolhas de odores, acetofenona e carvona. Mesmo sem nunca terem tido contato com acetofenona, o grupo apresentou aversão a substancia: os pesquisadores inseriram uma memória aversiva ao odor, sem que o animal nunca tivesse tido contato com o mesmo.

Não satisfeitos em desvendar a primeira parte do circuito da memória aversiva ao odor acetofenona, os pesquisadores também queriam estimular o circuito do cérebro ativado em resposta ao choque elétrico. Dessa forma, implantando a memória aversiva inteiramente de forma artificial. Estudos anteriores haviam relacionado duas regiões do cérebro ao comportamento aversivo a um estímulo: a habenula lateral (LHb) e a área ventral tegmental (VTA). Em um novo grupo de animais os pesquisadores estimularam a LHb e a VTA ao mesmo tempo em que estimulavam os neurônios olfatórios. Agora quando colocados para escolher entre os odores acetofenona e carvona, novamente eles apresentaram aversão a acetofenona.

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Em um segundo experimento um novo grupo de animais passou por uma estimulação cerebral do núcleo tegmental latero-dorsal (LTD) – uma região do cérebro que também se comunica com a área ventral tegmental, mas para a atração de estímulos. Quando ativada essa região junto aos neurônios olfativos para acetofenona, os animais passaram a apresentar atração ao odor.

É importante destacar que os cientistas sempre utilizam controles em seus experimentos. E anterior ao condicionamento com choque, os camundongos não tinham preferência ao odor carvona ou a acetofenona. Ou seja, com o aprendizado os animais constroem uma memória de aversão ao odor e os pesquisadores conseguiram re-construir essa aversão inteiramente de forma artificial. Implantando uma memória aversiva ou atrativa a um odor que os animais nunca tinham entrado em contato.

O que isso quer dizer para o futuro de inserir memórias em seres humanos? Muito pouco. Os camundongos do estudo tiveram todo o circuito cerebral investigado antes que um trabalho desses pudesse ser feito. Todos as regiões cerebrais envolvidas no comportamento de aversão e reconhecimento de um odor foram mapeados em estudos anteriores para que pudessem ser “ativados” artificialmente nesse estudo. E isso seria um salto muito grande para passar a seres humanos. Atualmente, a ciência investiga em humanos algumas formas de “inserir um pensamento”, mas as técnicas utilizadas para isso são completamente diferentes. Falaremos mais sobre isso em publicações futuras! Fique ligado 😉

 

Para quem quiser ler sobre o estudo. Aqui está o link para o paper: https://www.nature.com/articles/s41593-019-0389-0

Créditos da imagem: Modificado do próprio artigo; Columbia Pictures © 2011.

 

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