Você sabia que hoje em dia existe uma tecnologia que nos permite estudar células-tronco de humanos adultos? Sei que pode parecer paradoxal, mas vamos explicar o que isso significa.
Para a ciência a classificação entre células-tronco e células não-tronco está na capacidade dessas células de gerarem células-filha de tipos diferentes. Por exemplo, as células tronco-embrionárias são capazes de produzir todos os tipos diferentes de células do nosso corpo, as células do fígado, da pele, do olho, do cérebro. Para que uma célula-tronco se torne uma célula em seu estágio final, ou mais maduro, ela passa pelo processo de diferenciação, no qual a cada etapa ela é um pouco menos célula-tronco e um pouco mais madura; até que chegue a seu estagio final e perca a capacidade de gerar células de outros tipos de tecido. .
Isso é muito útil para seu corpo quando pensamos que as células de sua pele, que estão em constante renovação, nunca voltem a ser tronco e consigam se diferenciar em uma célula do olho, por exemplo. Pelo menos era isso que se imaginava até então. Novas tecnologias nos permitem fazer uma célula já diferenciada retornar a seu estágio de célula-tronco, podendo gerar qualquer célula no corpo humano. Isso ocorre através de um processo chamado reprogramação. Mas como os cientistas fazem isso com células humanas?
As células humanas podem ser coletadas de um indivíduo através de amostras de pele, de um dente de leite, ou até mesmo da urina. As células coletadas são cultivadas em uma placa de ensaio, onde são adicionados fatores que a levam de volta a sua forma “tronco”. Uma vez no estágio de célula-tronco, os cientistas podem adicionar ao meio de crescimento fatores que permitem sua diferenciação para qualquer outra célula de interesse, como neurônios. Ou seja, no final, tem-se um neurônio humano cultivado dentro de um tubo de ensaio, pronto para ser estudado.
Não é de se espantar que essa técnica tenha revolucionado a neurociência. O grupo de pesquisadores que descobriu a reprogramação (coordenado pelo Dr. Yamanaka do Japão) ganhou o prêmio Nobel de medicina. A técnica permitiu que cientistas testem novas drogas em tecidos humanos, estudem o desenvolvimento de doenças e cultivem neurônios personalizados – que possuem o potencial de futuramente servir para transplante de uma região danificada do cérebro, por exemplo. O avanço na técnica de reprogramação culminou com a geração de “mini-cérebros” ou organoides cerebrais. Nesse caso, as células tronco reprogramadas são diferenciadas em neurônios e cultivadas em um meio para que cresçam e se organizem em uma estrutura semelhante a de um cérebro em desenvolvimento embrionário, nas fases iniciais de uma gestação.
É claro que existe um limite, o cérebro é um órgão muito complexo para que se desenvolvesse por completo em uma garrafa de cultura. Os mini-cérebros são capazes de crescer até certo ponto de complexidade, se degenerando após um tempo.
Apesar da complexidade da técnica, da aparente distância da nossa realidade, isso é feito aqui no Brasil sim. Um exemplo é o grupo de pesquisa liderado pelo Prof. Stevens Rehen, da UFRJ, eles usam células reprogramadas humanas para o entendimento de doenças e como elas afetam o cérebro humano. O trabalho do seu grupo publicado em 2016, usando os mini-cérebros, foi um dos essenciais para que se chegasse a conclusão de que a infecção pelo vírus da Zika durante a gestação é sim capaz de causar microcefalia. Em uma garrafa de cultura, seu grupo de pesquisa tratou os mini-cérebros com zika, e verificaram que isso prejudicava o crescimento do organoide cerebral, situação que não acontecia em seu grupo controle (saudável). Na época, o Neuropod entrevistou a profa. Patricia Garcez (clique aqui para o link), primeira autora deste importante trabalho.
Figura adaptada de: Zika virus impairs growth in human neurospheres and brain organoids. Garcez et al (2016), Science.
Um outro grupo de pesquisa brasileiro, que também teve grande importância no estabelecimento da relação entre a infecção pelo vírus da Zika e o aparecimento de microcefalia por meio dos mini-cérebros, foi o da profa. Patricia Beltrão Braga, da USP. Ela aprendeu a técnica com o grupo do próprio Dr. Yamanaka, e hoje mantém um projeto chamado “Fada do Dente” em colaboração com pesquisadores da Califórnia. Nesse projeto, são arrecadados dentes de leite de crianças com autismo. À partir da poupa do dente, é possível isolar células, gerar neurônios e mini-cérebros. Esses neurônios e organoides não só são de humanos, mas tem também o mesmo material genético da criança com autismo que o originou. Com isso, o grupo pode estudar as diferenças no desenvolvimento do cérebro e nos neurônios de crianças com autismo; e até mesmo testar novos medicamentos. O grupo recebe dentes de todo Brasil, mais informações sobre como doar podem ser obtidas no site do projeto.
Os organoides cerebrais são hoje utilizado para diversos fins, estudos do desenvolvimento cerebral, de doenças relacionadas ao desenvolvimento, como a esquizofrenia e o autismo, e muitos outros. Não sabemos que benefícios no futuro essa técnica irá nos trazer, mas o presente é promissor.
Comments
Pingback: Entenda o que é um neurocientista
Pingback: NeuroCovid: como a COVID-19 pode afetar o cérebro? – NeuroPod
Pingback: O que é e como estudar a dor? – NeuroPod